Karla Quintana é mexicana, jurista e especialista em direitos humanos. Em dezembro de 2024, ela foi nomeada secretária-geral assistente das Nações Unidas.
Sua missão é liderar a Instituição Independente para Pessoas Desaparecidas na Síria. Num cargo semelhante no México, ela chefiou esforços para lidar com 100 mil casos de desaparecimento em seu país de origem.
Uma instituição nascida da dor e da esperança
À frente de uma nova empreitada sobre os desaparecidos na guerra da Síria, Karla Quintana falou à ONU News sobre o recente relatório do secretário-geral sobre o tema, desafios humanitários e técnicos de um trabalho “que, mais do que burocrático, é profundamente humano.”
Criada há dois anos, a Instituição Independente para as Pessoas Desaparecidas na Síria nasceu da luta incansável das famílias sírias que procuram notícias de seus entes queridos.
A chefe da instituição ressaltou que o mandato é claro tanto para quem faz parte dela como para todas as autoridades sírias: “procurar todos os desaparecidos, independentemente da sua filiação política, nacionalidade ou do momento em que desapareceram, incluindo pessoas desaparecidas às mãos de diferentes grupos armados, incluindo o Daesh e outros”.
Karla Quintana (à direita, de jaqueta branca), chefe do IIMP, encontra mulheres cujos entes queridos estão desaparecidos
Crianças e migrantes desaparecidos
Segundo Quintana, a instituição abriu diversas linhas de investigação, incluindo os desaparecimentos forçados cometidos pelo antigo regime, os casos de crianças desaparecidas, as vítimas de grupos armados como o Daesh e os migrantes desaparecidos. Ela ressaltou que as investigações iniciaram por esses meios porque têm informações valiosas e relatos diretos de sobreviventes e familiares.
Liderança síria com apoio internacional
O trabalho da instituição foi autorizado pela Assembleia Geral da ONU refletindo a prioridade política e humanitária do tema. Quintana sublinhou, contudo, que o processo deve ser “liderado pelos sírios e apoiado pela comunidade internacional”.
Karla Quintana afirmou que “todos os sírios têm alguém desaparecido ou conhecem alguém que desapareceu”, daí essa dor ser comum, mas também o é a esperança de reencontrar os seus entes queridos.
Ela sublinhou ainda que a instituição está presente para apoiar essa esperança, partilhar a experiência, competências e recursos que contêm, e que têm estado “em contacto direto com as autoridades sírias e com organizações da sociedade civil para avançar nesse trabalho.”
Tempo: o inimigo silencioso
Para Karla Quintana, o tempo é um fator determinante na busca pelos desaparecidos, pois quanto mais tempo se demora, maiores são as probabilidades de perder informação, sublinhando que testemunhas envelhecem, sobreviventes morrem e documentos desaparecem; daí a necessidade de “agir agora, enquanto ainda há tempo”.
Ela lembrou exemplos de outros países, como Argentina, Guatemala e os Bálcãs, onde os atrasos nas investigações dificultaram a obtenção de provas e relatos; daí o tempo ser essencial, tanto do ponto de vista humano quanto científico, pois é sempre mais fácil trabalhar com casos recentes.
Karla Quintana (centro), chefe da Instituição Independente, visita a Praça Al Marjeh em Damasco, um ponto focal onde famílias de pessoas desaparecidas exibem fotos na esperança de encontrar seus entes queridos
Informação e da confiança
Entre os maiores desafios está o acesso e a partilha de dados. Quintana explicou que é preciso informação, mas para a obter é necessário conquistar a confiança das famílias e ter acesso à documentação oficial”.
Segundo a chefe da instituição, esta é precisamente a razão pela qual a instituição foi criada.
“As famílias entenderam há muito tempo que é preciso trabalhar em conjunto. Quanto mais informação tivermos, maior será a probabilidade de sucesso.”
Procurar os vivos, respeitar os mortos
Questionada sobre a possibilidade de encontrar sobreviventes, especialmente após o esvaziamento de prisões notórias como Saydnaya e Al-Mazzeh, Karla Quintana foi clara, afirmando que o primeiro princípio da busca é procurar as pessoas vivas, e que “só quando há provas concretas de que possam ter morrido é que se procuram os restos mortais.”
Ela revelou que há informações credíveis sobre crianças desaparecidas que podem ainda estar vivas e destacou o trabalho de uma unidade forense criada para identificar vítimas e apoiar investigações.
A força das mulheres sírias
Emocionada, a secretária-geral assistente, Karla Quintana, partilhou uma história que simboliza o espírito do seu trabalho.
Ela contou que em fevereiro, em Daraya, conheceu um grupo de mulheres que nunca tinham falado com nenhuma organização, e que uma delas contou como o marido desapareceu quando a filha tinha apenas alguns meses.
Ela declarou que “hoje essa menina é adolescente, e estava presente quando a mãe contou como procurou o marido, estudou e se tornou professora”. Quintana afirmou que ver o orgulho nos olhos da filha foi um dos momentos mais marcantes da sua carreira.
“Estamos aqui por elas”
Encerrando a entrevista, Karla Quintana deixou uma mensagem clara que a instituição “está aqui por elas”, enfatizando que se deve colocar o conhecimento e experiência ao serviço delas, para ajudá-las a encontrar respostas e a descobrir a verdade.
Com serenidade e firmeza, por fim, Quintana resumiu a essência da sua missão, mencionando que “procurar os desaparecidos é um trabalho difícil e doloroso, mas também profundamente humano; que é antes de tudo, um ato de amor e de justiça.”
Karla Quintana, chefe da Instituição Independente sobre Pessoas Desaparecidas na Síria, fala com Ezzat El Ferri da ONU News Árabe
Leia os principais trechos da entrevista da ONU News Árabe com Carla Quintana.
ONU News: Karla Quintana, chefe da Instituição Independente para as Pessoas Desaparecidas na Síria, muito obrigada por dedicar o seu tempo para falar connosco hoje. Primeiro, gostaria de lhe perguntar sobre o relatório do secretário-geral, que é o motivo da sua vinda a Nova Iorque. Poderia, por favor, dar-nos algumas atualizações ou destacar alguns dos principais pontos desse relatório?
Karla Quintana: Sim, antes de tudo, gostaria de começar lembrando que a Instituição Independente para as Pessoas Desaparecidas é muito recente, tem apenas dois anos de existência. Ela foi criada graças à luta das famílias dos desaparecidos na Síria. Este relatório foi publicado pelo secretário-geral no mês passado. O que é importante nesse relatório é que explicamos no que temos trabalhado na instituição, com as famílias, com as autoridades sírias, com as organizações da sociedade civil, e há vários pontos que considero fundamentais. O nosso mandato é muito amplo. Temos o mandato de procurar todos os desaparecidos e quando digo todos, refiro-me a todas as pessoas desaparecidas na Síria, independentemente da sua nacionalidade, etnia, religião ou qualquer outra característica. Elas desapareceram. E isso é algo essencial: procuramos todos os que desapareceram na Síria e também aqueles que desapareceram enquanto fugiam do país. Essa é uma das partes mais importantes do nosso mandato. A outra é apoiar as famílias e os sobreviventes.
O relatório do secretário-geral explica o que estamos fazendo em relação a esses dois mandatos. No que se refere à busca por todos os desaparecidos na Síria, abrimos várias linhas de investigação: uma para as pessoas que foram desaparecidas à força pelo antigo regime; outra dedicada às crianças desaparecidas. Também investigamos os desaparecimentos cometidos pelo Daesh; e ainda os casos de migrantes desaparecidos. Além disso, estamos atentos aos desaparecimentos ocorridos após dezembro de 2018. O fato de termos linhas de investigação específicas não significa que não estejamos a investigar outros tipos de desaparecimentos. Escolhemos começar por essas porque temos informações valiosas e temos estado em contato com muitos sobreviventes e famílias que nos forneceram dados cruciais.
ON: Voltaremos a falar das famílias, mas antes, queria perguntar-lhe: o vosso mandato vem diretamente da Assembleia Geral, o que mostra a importância que os Estados-membros atribuem a este tema. Como é que isso se traduz, na prática, e o que mais pode ser feito para apoiar a vossa missão?
KQ: Como disse, fomos criados pela Assembleia Geral, e o relatório do secretário-geral é muito claro ao pedir aos Estados-membros que continuem a apoiar a nossa missão. Esta é uma instituição única, criada por famílias. Uma das nossas principais forças é a capacidade de trabalhar diretamente no terreno, com as famílias, com as autoridades e com a sociedade civil. Procurar os desaparecidos é um esforço coletivo; ninguém pode fazê-lo sozinho. Estamos a falar de centenas de milhares de pessoas desaparecidas na Síria. Quando estivemos no país, percebemos que praticamente todos os sírios têm alguém desaparecido ou conhecem alguém que desapareceu. É algo que une todos: o desejo de reconstruir o país e a esperança de reencontrar os entes queridos.
Estamos aqui para apoiar essa esperança. E temos sido muito claros: este processo deve ser liderado pelos sírios, com apoio internacional. Devemos aprender com experiências passadas e ajudar os sírios, autoridades e sociedade, a construir as suas próprias respostas. Temos experiência, competências e recursos, e estamos prontos para partilhá-los. Temos também estado em contato com as autoridades sírias para esse fim.
Karla Quintana (centro à direita), chefe da Instituição Independente, realiza uma reunião com organizações da sociedade civil em Damasco
ON: Falou da sua experiência, e é uma especialista reconhecida nesta área. Como é que a sua experiência no México tem ajudado na execução do seu mandato na Síria?
KQ: A experiência adquirida não apenas no México, mas em toda a América Latina, na Colômbia, Argentina, Guatemala, entre outros, deu-me a oportunidade de compreender quais metodologias funcionam e quais não funcionam. Quando se trata de procurar desaparecidos, o tempo é essencial. Não podemos perder tempo a experimentar quando já sabemos o que resulta. É claro que a experiência mexicana, latino-americana ou dos Balcãs não é a mesma que a síria. Por isso, insistimos que este processo deve ser conduzido pelos sírios, dentro do contexto sírio, mas se beneficiando da experiência internacional.
Temos metodologias científicas que precisam ser aplicadas e conhecimento sobre a coleta e partilha de dados que deve ser utilizado. E isso leva-nos a um ponto importante mencionado no relatório do secretário-geral: o compartilhamento e proteção de dados. Um dos maiores desafios na busca pelos desaparecidos é a informação. Precisamos dela, e, para obtê-la, é necessário conquistar a confiança das famílias e ter acesso a documentação oficial. Um dos trabalhos mais importantes do nosso mandato é reunir toda essa informação e colocar à mesa todos os que a possuem. Não basta ter a informação, é preciso partilhá-la, e isso não é tarefa fácil. Foi exatamente por isso que as famílias pediram a criação desta instituição: porque compreenderam há muito tempo que é necessário trabalhar em conjunto. Temos que ligar os pontos para encontrar os desaparecidos. Quanto mais informação tivermos, maior a probabilidade de sucesso.
ON: Falou sobre o tempo e, na sua última sessão informativa na Assembleia Geral, também destacou esse ponto. Pode explicar por que o tempo é tão importante e o que a sua equipe tem feito para acelerar o trabalho?
KQ: Sim. Quando procuramos pessoas desaparecidas, o tempo é essencial. Quanto mais demoramos a iniciar a busca, maiores são as probabilidades de perder informação. Precisamos falar com testemunhas, ouvir sobreviventes, ter acesso à documentação, e tudo isso deve ser feito o quanto antes. A experiência em vários países, como a Argentina ou os Balcãs, mostra que, com o passar dos anos, as testemunhas e as próprias vítimas vão desaparecendo. Não queremos que isso aconteça. Precisamos reunir toda a informação possível agora, para dar respostas mais rápidas. E, do ponto de vista científico, também é mais fácil trabalhar com casos recentes.
ON: Falou sobre a partilha de informação. Sabemos que há muitas pessoas que desapareceram nas prisões do antigo regime, mas também houve grupos armados e atores não estatais responsáveis por outros desaparecimentos. Como têm sido as respostas das autoridades interinas em relação a esses casos? Houve algum avanço em determinar o paradeiro dessas pessoas?
KQ: Como disse, o nosso mandato é procurar todos os desaparecidos, independentemente da sua filiação política, nacionalidade ou do momento em que desapareceram. Isso inclui pessoas desaparecidas nas mãos de diferentes grupos armados, incluindo o Daesh e outros. Temos estado em contato direto com as autoridades sírias e o nosso mandato é claro, tanto para nós como para elas. Também existe uma Comissão Nacional Síria para os Desaparecidos, cujo mandato é bastante semelhante ao nosso.
Recebemos informações credíveis sobre pessoas desaparecidas tanto antes quanto depois de dezembro de 2018, de regiões como Latakia, Tartus e Sweida. Temos estado em contato com famílias e organizações da sociedade civil, e discutimos esses casos diretamente com as autoridades sírias e com a Comissão Nacional. Oferecemos o nosso apoio total para colaborar nas investigações e localizar essas pessoas.
ON: Disse anteriormente que o seu mandato é procurar todos, e claro que o Líbano também foi fortemente afetado por desaparecimentos durante a presença síria no país. Pode partilhar connosco alguma atualização sobre esse tema e sobre o paradeiro dessas pessoas?
KQ: Sim, há muitos cidadãos libaneses que desapareceram na Síria nas últimas décadas, assim como muitos sírios que desapareceram enquanto fugiam através do Líbano. Temos estado em contato com as autoridades libanesas e com a Comissão Nacional Libanesa para a Busca de Pessoas Desaparecidas, e estamos trabalhando em conjunto nesse dossiê. Queremos obter mais informações sobre os libaneses desaparecidos na Síria e os sírios desaparecidos no Líbano. Já tivemos contato com o Ministério da Justiça do Líbano, e estamos cooperando diretamente nessa frente.
Fadwa Mahmoud, cofundadora da Families For Freedom e mãe e esposa de pessoas desaparecidas, e Karla Quintana, do México, chefe da Instituição Independente sobre Pessoas Desaparecidas na Síria
ON: Prisões notórias como Saydnaya ou Al-Mazzeh, entre outras, foram esvaziadas há alguns meses. Ainda há esperança de encontrar sobreviventes? E considera que encontrar sobreviventes é uma parte importante do seu mandato?
KQ: Sim, claro. O primeiro princípio da busca é este: devemos procurar as pessoas vivas. Só quando temos informações concretas de que podem não estar vivas é que passamos a procurar os seus restos mortais. É verdade que havia grande esperança de encontrar muitas pessoas vivas após a queda do regime, e, de fato, há casos de pessoas que regressaram com vida. Continuamos a procurar pessoas vivas.
Por exemplo, estamos trabalhando em casos de crianças desaparecidas. Temos informações credíveis que indicam que algumas dessas crianças, agora jovens adultos, ainda podem estar vivas. Continuamos a investigar essas pistas. Também trabalhamos em casos de pessoas que podem ter morrido, e é por isso que criámos uma unidade forense, pronta a ser utilizada para identificar restos mortais e apoiar as investigações. Num contexto com centenas de milhares de desaparecidos, cada pista é vital.
ON: Disse que esta é uma instituição criada pelas famílias. Como é que interagem atualmente com elas? E que tipo de feedback têm recebido?
KQ: Obrigada por essa pergunta, é importante porque me permite voltar ao relatório do secretário-geral, que descreve precisamente o nosso trabalho com as famílias e as organizações da sociedade civil, não só desde que a instituição foi criada, mas também antes disso. Elas foram fundamentais para a nossa criação, e continuam a ser o coração do nosso trabalho.
Trabalhamos literalmente todos os dias com famílias, sobreviventes e organizações, tanto dentro da Síria como fora. Temos canais específicos de comunicação e realizamos reuniões periódicas para atualizá-los sobre o progresso das buscas, as próximas etapas e as nossas decisões estratégicas. Também temos um Conselho Consultivo, que se reuniu pela primeira vez na semana passada: são 11 membros, entre familiares de desaparecidos, especialistas internacionais e representantes de organizações da sociedade civil.
Quando dizemos que esta é uma instituição centrada nas famílias e nas vítimas, não é apenas uma frase, é algo que aplicamos diariamente, em todas as áreas do nosso trabalho: nas buscas, nas perícias forenses e nas políticas públicas. É isso que torna esta instituição única no sistema das Nações Unidas e no mundo. Temos muito orgulho em dizer que somos uma instituição criada por sírios e para sírios, e que continuaremos comprometidos com essa missão.
ON: Já conheceu muitas dessas famílias. Há alguma história em particular que a tenha marcado?
KQ: Essa é uma pergunta difícil, depois de mais de 20 anos trabalhando com casos de desaparecimentos. Mas o que mais me impressiona, e continua a me emocionar, é a força das mulheres. As mulheres sírias são extraordinárias na sua coragem e perseverança em procurar os seus entes queridos, dentro e fora da Síria. Enfrentam autoridades, enfrentam a comunidade internacional, a pobreza e a falta de oportunidades.
Lembro-me particularmente de um encontro em Daraya, em fevereiro passado, com um grupo de mulheres que nunca tinham falado com nenhuma organização, nem nacional nem internacional. Elas nem sequer sabiam que existiam outras mulheres na mesma situação. Partilharam connosco as suas histórias, a esperança que ainda mantêm viva. Uma delas contou como o marido desapareceu quando a sua filha tinha apenas dois ou três meses. Hoje essa menina é adolescente, e estava com ela durante a reunião.
A mãe começou a contar, em inglês, como procurou o marido, como começou a estudar e hoje é professora. O rosto da filha… parecia que era a primeira vez que ela percebia tudo o que a mãe tinha enfrentado. Sentia-se orgulhosa. Aquele olhar da menina, de 13 ou 14 anos, de admiração e esperança, é algo que levo comigo sempre que penso na missão de procurar os desaparecidos. É um trabalho duro, complexo, mas também profundamente humano.
ON: Se tivesse uma mensagem para essas mulheres, e para aquela menina, qual seria?
KQ: A minha mensagem seria: estamos aqui por elas. Não são elas que nos acompanham nesta busca, somos nós que as acompanhamos. Devemos colocar o nosso conhecimento, a nossa experiência e as nossas competências ao serviço delas, para ajudá-las a encontrar respostas e a descobrir a verdade.
Source of original article: United Nations / Nações Unidas (news.un.org). Photo credit: UN. The content of this article does not necessarily reflect the views or opinion of Global Diaspora News (www.globaldiasporanews.net).
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