Há 25 anos, uma carta mudou a vida de Catarina Furtado. Chegava-lhe das Nações Unidas, assinada por Kofi Annan, secretário-geral entre 1997 e 2006, com o convite para se tornar embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, o Unfpa, como recorda nessa entrevista à ONU News, de Lisboa.

“Abro a carta e é todo aquele impacto que foi entre a alegria imensa e o medo gigante”.

Descobrindo o mundo

Na altura, já era um dos principais rostos da televisão portuguesa, com percurso também na área da representação e do jornalismo, mas confessa que sabia pouco sobre o mundo.

“Eu sabia muito pouco sobre a maior constatação de todas: quem sofre mais no mundo são as crianças, são as raparigas e são as mulheres. Eu não sabia isso”.

Desde então, Catarina Furtado percorreu 18 países, viveu de perto as feridas da desigualdade e transformou essa descoberta num compromisso de vida, levando as câmaras da série documental “Príncipes do Nada”, que esteve no ar durante 19 anos na RTP, emissora onde trabalha, com objetivo de dar visibilidade ao trabalho do Unfpa.

As primeiras missões

A primeira missão levou-a até Moçambique, outro país de língua portuguesa, onde ajudou a criar o primeiro cibercafé juvenil, com o apoio do Unfpa.

Catarina explica que “foram os jovens que diziam: ‘nós queremos espalhar a verdade, queremos que os nossos pais e avós deixem de pensar que a Sida (Aids) é uma invenção do Ocidente’.” Era o início de uma longa viagem pelo terreno, entre projetos de saúde materna, planeamento familiar e proteção contra a violência baseada no género.

Da África à Ásia, do Haiti à Índia, da Colômbia à Guiné-Bissau, Catarina aprendeu mais sobre a força silenciosa das mulheres que conheceu. “As mulheres são as maiores heroínas de sempre”, afirma.

“São sempre as mulheres que andam com as casas às costas, mesmo quando são absolutamente violentadas, violadas, maltratadas, negligenciadas, silenciadas.”

Entre as muitas missões, Catarina destaca o trabalho dos profissionais do Unfpa. “Quem trabalha para o Unfpa vai para lá da sua condição de funcionário. Há uma espécie de prolongamento na sua condição de cidadão ou de cidadã. E tem mesmo um bater do coração diferente.”

Entre avanços e retrocessos

Nestes 25 anos, Catarina Furtado testemunhou progressos significativos.

“Quando eu comecei, há 25 anos, a situação estava muito pior. A mortalidade materna foi reduzida em 40%.

O número de crianças a morrer até aos 5 anos diminuiu em 51%.”

Esses números, diz, resultaram de um investimento sério “no planeamento familiar, na saúde sexual e reprodutiva, na saúde materna, na educação sexual e compreensiva nas escolas”.

Mas o tom da sua voz muda quando fala do presente. “Neste momento o que está a acontecer é exatamente o contrário. Um desinvestimento total, um aumento, outra vez, da mortalidade materna, um aumento da gravidez adolescente.”

Catarina Furtado foi convidada em 2000 pelo ganês Kofi Annan

Segurança da mulher

A embaixadora de Boa Vontade fala de um tempo em que “os discursos populistas querem acabar com os direitos das mulheres” e em que “os orçamentos estão a ser desviados para outro tipo de segurança que não seja a segurança da mulher: a segurança com armas, segurança militar”.

Nesta entrevista à ONU News, Catarina Furtado sublinha que os mais vulneráveis acabam por pagar a maior fatura.

“É sempre o corpo da mulher a maior vítima. Sempre onde se vai poupar é no corpo da mulher, onde se vai atacar é no corpo da mulher.”

A dignidade reencontrada

Em missões humanitárias, Catarina presenciou histórias que a marcaram para sempre. Uma das mais duras aconteceu na Colômbia. “Foi a única vez que eu tive que parar a câmara, porque não aguentei”, confessa. “Uma mulher a relatar que foi violada por milícias e eu senti-me muito mal por estar a sofrer apenas com a narrativa de uma coisa que efetivamente aconteceu no corpo daquela mulher.”

Mas Catarina lembra que, mesmo nas situações mais sombrias, há lugar para a esperança.

“Há um projeto do Unfpa, que aquilo que faz é não deixar que estes traumas fiquem nelas, devolvem-lhes a dignidade que elas acham que perderam. Mas uma mulher nunca perde a dignidade. Ela é que acha que perde a dignidade.”

Pôr fim à mutilação genital feminina

A luta contra a mutilação genital feminina é uma das causas que mais defende, até porque fez parte da equipa responsável pela mudança da lei na Guiné-Bissau.

“Sinto-me muito orgulhosa porque foi um conjunto de pessoas que pressionaram o governo português, para fazer uma pressão sobre o governo na Guiné-Bissau, para que se constituísse uma lei que aprovasse a condenação total do exercício nefasto que é a prática da mutilação genital feminina.”

Catarina explica que assistiu à mudança no terreno. “Passado uns anos de investimento sério, já as meninas diziam ‘eu não quero’.”

Catarina Furtado foi distinguida por mais de 20 anos ao serviço da Unfpa

Corações com Coroa: o eco em Portugal

Há 13 anos, fundou a associação Corações Com Coroa, uma ponte entre o seu trabalho internacional enquanto embaixadora e a realidade portuguesa. “São apoiadas todos os dias centenas de mulheres e raparigas portuguesas ou quem quer vir e precisa de apoio. Já reerguemos muitas e muitas vidas de raparigas e mulheres.”

Com bolsas de estudo, projetos de educação e combate à pobreza menstrual, a associação é um reflexo da sua missão. “O meu coração é elástico”, afirma.

“Não se esqueça de mim”

Há frases que ficam para sempre e Catarina recorda uma mulher em São Tomé e Príncipe, outra nação lusófona na África, que, ao despedir-se, lhe disse: “Não se esqueça de mim.”

Em jeito de resposta. Catarina Furtado promete não esquecer. “A única frase que posso mesmo dizer – com medo, porque o mundo está muito feio e os retrocessos já não são ameaças, são realidade – é nós não nos vamos esquecer de vocês mulheres, meninas e raparigas.”

Leia na íntegra a entrevista da ONU News com Catarina Furtado, embaixadora de Boa vontade do Unfpa:

 

 

ONU News: Como surgiu o convite para ser embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, Unfpa?

Catarina Furtado – Já era comunicadora e, por isso, vieram ter comigo, alguém enviado pelo Unfpa para encontrar uma porta-voz, uma embaixadora de Boa Vontade para o Unfpa em Portugal. Entrevistou outras pessoas, até hoje não sei quem foram, mas foram figuras públicas. Eu já, na altura, tinha muitas preocupações, com as desigualdades sociais e com as questões da igualdade de género.

Quando fiz essa entrevista, não fazia ideia para o que seria. Fiz a entrevista com o hunter e, só passado muito tempo, é que eu recebi o convite, na altura do Kofi Annan. Essa sensação vive em mim, porque foi por carta. Abro a carta e é todo aquele impacto que foi entre a alegria imensa e o medo gigante, porque tudo o que eu me proponho de fazer, tento de fazer, o mais possível, com seriedade. E, naquela altura, eu sabia muito pouco sobre o mundo, e muito pouco sobre a maior constatação de todas, que é quem sofre mais no mundo são as crianças, são as raparigas e são as mulheres. Eu não sabia isso. Eu tinha preocupações já, mas não fazia ideia.

 

ON – Ao longo destes 25 anos passou por muitos países. Quantos foram?

CF – No total, já fui a 18 países, sendo que em alguns fui em missão exclusiva enquanto embaixadora de Boa Vontade do Unfpa. Em outros, fiz coincidir a minha missão de embaixadora com a de documentarista dos Príncipes do Nada, que fiz durante muitos anos.

Comecei há 19 anos a fazer os Príncipes do Nada, fruto do trabalho voluntário com as Nações Unidas e com o Unfpa, propus à RTP exatamente fazer esse trabalho, que era ir ao terreno e poder reportar o trabalho do Unfpa. E depois outras idas a outros países, enquanto embaixadora, mas a fazer advocacy, ou a ter reuniões com decisores políticos, com ministros, com parlamentares. Outras vezes para fazer discursos e testemunhar enquanto embaixadora, daquilo que tinham sido até então as missões, às vezes até para moderar debates entre parlamentares, o que é sempre muito interessante porque aprendo muito.

Portanto, foram 18 países, desde o Sudão do Sul à Índia, ao Haiti, Colômbia, Bangladesh, todas as ex-colónias portuguesas. E em todos eles eu percebi uma coisa que é mesmo importante quando se vai à definição do que é que esta agência das Nações Unidas, trabalha todos os dias, para que nenhuma mulher morra ao dar à luz, para que existam zero mortes maternas, zero ausências de serviços de planeamento familiar e zero formas de violência com base no género. E também para potenciar os jovens, o imenso que os jovens têm, em particular as raparigas.

A embaixadora da Boa Vontade do Unfpa, Catarina Furtado, visitou uma escola em Díli, Timor-Leste

ON – Qual foi a primeira missão que fez enquanto embaixadora do Unfpa?

CF – A primeira missão que eu fiz com o Unfpa foi em Moçambique. E tenho o orgulho de dizer que com a Unfpa ajudámos a criar o primeiro cibercafé em Moçambique, com jovens, porque eram os jovens que me diziam: “nós queremos espalhar a verdade, queremos que os nossos pais e avós deixem de pensar que a SIDA é uma invenção do Ocidente, queremos informar que, de facto, é uma doença e que é preciso promover o preservativo, uma sexualidade mais saudável”. Foi muito interessante, essa foi a primeira viagem.

Depois disso fiz muitas outras e sempre com esta vertente quer da saúde materna, quer das mortes evitáveis,  quer também da proteção social e da proteção da violência com base no género. Por exemplo, no Haiti, depois do terramoto, foram feitas aquelas tendas, campos de deslocados. E um dos projetos mais fascinantes da Unfpa foi a colocação de lâmpadas ao longo de todos os corredores, que separavam as tendas dos deslocados até às casas de banho. Porquê? Porque só nesse corredor, nessa pequena distância que uma mulher percorria da sua tenda até à casa de banho, ela era violada. Portanto, quando se pensa como é que uma mulher fica mais segura, tem de se pensar que é preciso pôr lâmpadas.

Muitas das mulheres arranjavam artimanhas para fazer dentro das tendas. E assim é em muitos dos campos de refugiados, porque têm muito medo de s er violadas. Então, usam panos, muitas vezes, para as suas necessidades fisiológicas. E elas disseram-me isso. Diziam-me com vergonha.

 

ON – Quais as principais evoluções destacaria ao longo destes 25 anos?

CF – Quando eu comecei, há 25 anos, pelo menos os relatórios dizem até 2023, o mundo estava muito pior do que diz respeito, por exemplo, à mortalidade materna. Ela foi reduzida em 40%. O número de crianças a morrer até aos 5 anos, nestes últimos 23 anos, diminuiu em 51%. Ora, isso é importante dizer porque eu começo este meu trabalho, esta minha missão voluntária, numa altura em que, de facto, tínhamos um mapeamento e um levantamento de tudo o que estava errado, da desigualdade de género, da mortalidade materna, dos casamentos infantis forçados e precoces, da gravidez adolescente, da mutilação genital feminina.

Tínhamos essas noções claras e que os números eram gritantes, mas, com essa noção clara, e aqui o Unfpa tem feito um trabalho absolutamente essencial e indispensável, houve, de facto, um grande investimento, quer no planeamento familiar, quer na saúde sexual e reprodutiva, quer na saúde materna, quer no apetrechar de medicamentos e de serviços qualificados, de pessoas profissionais qualificadas, nos centros de saúde, espalhados por todos os países em desenvolvimento, quer na educação sexual e compreensiva nas escolas, quer numa consciência sobre estas questões, e houve esse investimento e por isso esses resultados vieram a ser comprovados.

ON – E como olha para a realidade hoje?

CF – Neste momento o que está a acontecer é exatamente o contrário. Um desinvestimento total, um aumento, outra vez, da mortalidade materna, um aumento da gravidez adolescente, aqui ou ali já se fala outra vez, com propriedade que é uma coisa muito estranha, da mutilação genital feminina, dos casamentos forçados, como se fossem a solução para a extrema pobreza, porque as desigualdades sociais estão a ser cada vez maiores.

Fala-se do acabar dos problemas ou do erradicar dos problemas da fecundidade e da natalidade, como o ter que recorrer, mais uma vez, ao corpo da mulher sem que isso pressuponha escolhas, condições, vidas dignas, oportunidades para as mulheres, portanto sem que isso pressuponha efetivamente o cuidar da sua saúde sexual e reprodutiva, como se a natalidade, ou pelo menos a natalidade em alguns países se resolvesse com estímulos da natalidade.

Portanto, são realidades muito preocupantes, em que o discurso populista e o discurso que de facto quer acabar com os direitos das mulheres e quer regressar a um estatuto da mulher que a priva da sua liberdade, e eles estão a ter força, estes discursos. Não só estão a ter forças, como têm, na prática, um desinvestimento total.

E na altura do Covid, todos os orçamentos que estavam alocados à saúde sexual e reprodutiva, aos centros de saúde, saúde materna, à natalidade, foram deslocados para questões mais urgentes, relacionadas com a vacinação. Mas hoje em dia sabe-se que todos estes investimentos estão a ser desviados para outro tipo de segurança que não seja a segurança da mulher: a segurança com armas, segurança militar. E é gravíssimo o que está a acontecer, é muito grave, porque os indicativos estão a trazer ao de cima uma pobreza muito grande e estas mudanças demográficas que estão a acontecer também, que levam muitos países a ter muitos filhos e outros países a terem muitos filhos, estão a provocar também uma enorme insegurança na mulher.

E é sempre o corpo da mulher a maior vítima. Sempre onde se vai poupar é no corpo da mulher, onde se vai atacar é no corpo da mulher.

Catarina Furtado (dir) é Embaixadora da Boa Vontade do Unfpa.

 

ON – E isso já se sente no terreno?

CF – Quando vou fazer as minhas missões vejo muito menos profissionais a trabalharem nestas áreas, vejo centros de saúde. Dá dó. É uma coisa que dá muita revolta. São centros de saúde a fecharem, são províncias inteiras sem um único centro de saúde, sem uma única possibilidade de uma mulher grávida ter vigilância durante a sua gravidez ou de ter o seu bebê em condições. São profissionais a ficarem desempregados, enfermeiros, parteiras, são materiais a deixarem de ser distribuídos e, portanto, as mulheres morrem com muito mais facilidade porque falta aquele, aquele soro, aquela seringa, como eu vi quando comecei há 25 anos.

Agora vejo tudo a dar para trás. E é revoltante, é revoltante porque tem tudo a ver com decisões, tem tudo a ver com, eu acho, com muitas noções do que é realmente o fascismo, a xenofobia, o racismo, onde a mulher está incluída. Há um preconceito gigante em relação ao poder da mulher e à sua autonomia física.

 

ON – Como explica o trabalho dos profissionais do Unfpa?

CF – Os profissionais do Unfpa, são muito mais do que profissionais. São um porto de abrigo. E eu vi muitas vezes mães desesperadas, abraçadas a enfermeiras ou a parteiras que eram contratadas pelos nossos serviços do Unfpa. Vi muitas mulheres desesperadas a serem acolhidas, não interessava a hora, pelos nossos profissionais. Portanto, eu acho que quem trabalha para o Unfpa vai para lá da sua condição de funcionário. Há uma espécie de prolongamento na sua condição de cidadão ou de cidadã. E tem mesmo um bater do coração diferente.

 

ON – Um dos temas centrais no seu trabalho é a igualdade de género. O que aprendeu com as mulheres que conheceu no seu percurso?

CF – Aquilo que aprendi também com o Unfpa é que as mulheres são as maiores heroínas de sempre. A maior admiração que tenho é pelas mulheres. E seja no Sudão do Sul, ou na Índia, ou na Guiné-Bissau, que é um país com o qual eu tenho uma ligação maior também, quer ou no Bangladesh, que é a Ásia e estou a falar de Áfricas muito diferentes e Ásia, ou no Líbano. São sempre as mulheres que andam com as casas às costas, mesmo quando são absolutamente violentadas, violadas, maltratadas, negligenciadas, silenciadas. São sempre as mulheres.

 

ON – O que têm em comum as mulheres nas suas lutas e sonhos?

CF – Aquilo que eu acho que as mulheres têm em comum é, de facto, uma capacidade de se reinventarem e, infelizmente, se colocarem em segundo plano. Ou seja, provavelmente sabem domesticar melhor o seu ego.

 

ON – Tem trazido a mutilação genital feminina  para a discussão pública. Sente uma evolução na erradicação desta prática?

CF – A mutilação genital feminina é uma das minhas maiores causas, até porque consegui testemunhar o antes e o depois, de uma pressão para que a vontade política existisse. A legislação é absolutamente amiga dos direitos humanos. Eles estão estipulados, mas se as leis não estiverem permanentemente a serem relembradas ou a serem utilizadas, os direitos humanos não são per si reconhecidos. São todos os dias violados.

No caso da mutilação genital feminina sinto-me muito orgulhosa porque foi um conjunto de pessoas da sociedade civil, parlamentares também, ONGs que se juntaram e pressionaram, inclusivamente o governo português, para fazer uma pressão sobre o governo na Guiné-Bissau para que se constituísse uma lei que aprovasse a condenação total do exercício nefasto que é a prática da mutilação genital feminina.

Eu estava lá enquanto embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a População. Portanto, quando essa lei passa, é uma emoção gigante perceber que podemos ter a lei do nosso lado, com todas as pinças e com toda a humildade. Eu sou branca, sou portuguesa, sou de um país que ainda por cima colonizou a Guiné-Bissau. Eu tenho que ter muita humildade na forma como chego a outro país onde as tradições são diferentes.

Mas a verdade é que as tradições podem manter-se, desde que elas não violem os direitos humanos. E essa espécie de autoridade eu tinha. A Guiné-Bissau que é um país extraordinário pode manter a tradição desde que não faça a prática do corte, ou dos vários cortes. A mutilação genital feminina é um conjunto de diferentes cortes do clitóris da mulher.

Passado uns anos de investimento sério, também com o apoio do Unfpa em programas que combatessem esta prática, nós tivemos os estudos e os relatórios e os números a seguir e tinha diminuído imensamente em muitas das províncias.

E eu fui lá e, portanto, tinha lá ido antes falar com régulos, com professores das escolas com mulheres, obviamente, com população em geral (23:22) e era uma realidade quase tabu, quase que não se podia falar nem nem mexer, não é? E passados os anos todos eu fui lá depois e já não havia, já as meninas diziam eu não quero.

ON – A associação Corações Com Coroa surgiu há 13 anos em paralelo com o seu trabalho no Unfpa. Quem apoiam?

Aqui são apoiadas todos os dias centenas de mulheres e raparigas portuguesas ou quem quer vir e precisa de apoio. E é atendimento gratuito. Já reerguemos muitas e muitas vidas de raparigas e mulheres. E já demos muitas bolsas de estudo: 56 bolsas de estudo universitárias com apoio biopsicossocial.

São muitas as raparigas portuguesas que têm hoje um curso universitário e que podem sonhar e que de outra forma não poderiam. E são muitos os projetos que temos nas escolas, pobreza menstrual, contra a violência doméstica.

E, portanto, o que eu quis foi ligar o Unfpa à Corações com Coroa porque o meu coração, de facto, é tudo menos fechado. O meu coração é elástico e se eu puder contar às nossas mulheres aqui e aos nossos parceiros até nós precisamos de financiamento permanente e o nosso maior financiamento é o setor privado são as pessoas, os amigos, os cúmplices as empresas, através da responsabilidade social que querem juntar-se a nós e que eu conto as histórias verdadeiras daqui, mas também de lá.

 

A embaixadora da Boa Vontade do Unfpa, Catarina Furtado, visitou uma clínica de saúde em Timor-Leste

ON – Recorda-se de algum momento mais difícil durante as missões?

CF – Foi a única vez que eu tive que parar a câmara, quando estava a fazer reportagem, porque não aguentei, porque me senti muito mal por estar a sofrer apenas com a narrativa de uma coisa que efetivamente aconteceu no corpo daquela mulher. É como se eu não tivesse sequer direito a sofrer, porque de facto ela estava a contar uma coisa que lhe aconteceu e eu estava a sofrer. Então tive que parar, tive que lhe pedir desculpa.

Uma mulher a relatar que foi violada por dois e três homens, das milícias, estamos a falar na Colômbia, que entravam nas casas, a primeira coisa que faziam era calar os filhos com um pano e depois calar as mães para que os filhos não vissem e não ouvissem. E depois violavam pela frente, por trás. E elas estavam ali a falar e a contar.

Se isto não são uma força da natureza. E não contavam aos maridos, porque senão os maridos iam abandoná-los. Quando elas foram vítimas, essas mulheres a contarem nessas histórias e a dizer que nunca contaram a nada aos filhos e que continuaram no dia seguinte a sua vida com esse segredo gigante dentro delas, mas continuavam a vida e iam trabalhar para quê? Para dar comida aos seus filhos.

Mas depois, felizmente, há um projeto do Unfpa ou de outra associação, que aquilo que faz é não deixar que estes traumas fiquem nelas. Então trabalham as questões afetivas, os traumas, e devolvem-lhes a dignidade que elas acham que perderam. Mas uma mulher nunca perde a dignidade. Ela é que acha que perde a dignidade. Então esse trabalho que é feito com psicólogas, com terapeutas, é interessantíssimo. E é um trabalho que é preciso que haja financiamento para recuperar essas mulheres.

E elas depois voltam para a sociedade. Os seus traumas. Mas voltam reerguidas.

 

ON – Enquanto embaixadora, teve a oportunidade de conhecer pessoas fascinantes, que fazem a diferença. Quem destacaria?

CF – Conheci o Nobel Denis Mukwege, que é Nobel da Paz, mas é também obstetra, ginecologista, da República Democrática do Congo e tive a oportunidade de o entrevistar. Ele fez um documentário interessantíssimo, porque ele tem uma ONG lá, que se chama City of Joy, e ele basicamente, aquilo que fazia, era cirurgias às mulheres que foram vítimas de violação dramática. E essas cirurgias salvavam vidas.

Ele chegou-me a contar que muitos militares entravam em casas de mulheres grávidas e com as espingardas, batiam nas barrigas e a seguir violavam. E ele recuperou muitas destas mulheres.

Ele anda pelo mundo inteiro, Nobel da Paz, muito em França, e quando vai à sua casa, na República Democrática do Congo, porque há sempre os negacionistas, os populistas, aqueles que odeiam as mulheres, ele é ameaçado constantemente de morte.

E o que é que acontece? Estas mulheres que ele reergueu, fazem turnos à volta da casa dele, vão-se revezando para que não aconteça nada ao seu anjo da guarda. São as mulheres que estão ali, agora sim, o escudo, mas por opção e sem violência. São elas que não deixam que nada aconteça ao seu anjo da guarda.

 

ON – Se tivesse que escolher uma imagem que represente estes 25 anos como embaixadora de Boa Vontade, qual seria?

CF – Seria uma mulher grávida. Com isto não estou a dizer que todas as mulheres que não são mães, não quiseram ser mães, não puderam ser mães, (não estão incluídas na minha memória, no meu trabalho diário, no meu esforço. Não. Mas desde que há 25 anos trabalho com o Fundo das Nações Unidas para a População, aquilo que mais retenho são de facto as mortes que eram inevitáveis e as quais eu assisti com imensa sensação de impotência e de raiva, porque era possível.

E à medida que os tempos foram avançando, a minha experiência com o Unfpa  deu-me ainda mais consciência e certeza de que era mesmo possível e que é mesmo possível evitar estas mortes de mães que dão à luz e que morrem a seguir, ou cujos bebés morrem, ou que mães que morrem antes ainda do parto, por questões absolutamente de indecisão política.

 

ON – Há alguma história em particular que não lhe saia da cabeça?

CF – Uma vez, estava em São Tomé a fazer uma missão, um documentário num sítio muito pequenino e muito pobre e, quando estava a vir-me embora, uma mãe de muitos filhos disse-me: “Catarina, leve-me um por favor.” Isto não é uma novidade. Muitas destas histórias já foram contadas, só que o que eu quero referir é que isto é amor. Eu disse que não podia e, a seguir, ouvi a frase que tantas outras vezes ouvi: “não se esqueça de mim”.

A única frase que posso mesmo dizer – com medo, porque o mundo está muito feio e os retrocessos já não são ameaças, são realidade – é nós não nos vamos esquecer de vocês mulheres, meninas e raparigas.

E a ONU, com muitas burocracias que tem, com muitos defeitos que tem – é uma estrutura feita de seres humanos – é um bem comum. Sem a ONU ou sem as agências das Nações Unidas, o mundo estaria muito pior, mesmo muito pior.

*Sara de Melo Rocha é correspondente da ONU News em Lisboa.

Source of original article: United Nations / Nações Unidas (news.un.org). Photo credit: UN. The content of this article does not necessarily reflect the views or opinion of Global Diaspora News (www.globaldiasporanews.net).

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